quinta-feira, 31 de agosto de 2006

Morte e vida involuntária (de Severino).

A noite lentamente se esvaía
e aos poucos, recolhia
a sua manta negra, estendida sobre o céu

O céu rapidamente empalidecia
e aos poucos, tingia
de rubro o horizonte, precipitando o sol

O sol imponente se erguia
e aos poucos, refletia
seu brilho nas casinhas da comunidade

A comunidade que nem bem dormira
e aos poucos, levantara e recordava o acontecido:

-Foram tantos os ruídos!

dos projéteis, o estampido
das pessoas, o gemido
dos fiéis, o pedido

para que cessasse o conflito
e fossem silenciados os fuzis

Os fuzis ainda fumegavam, lá pelas cinco
horas daquela manhã, hora em que
todo homem de bem se prepara para a labuta

A labuta nem bem começara, e no entanto
já se apressara, avexado,
para sair de casa, adiantado, o Severo.

O Severo, pai de família, trabalhador,
contas a pagar, dois ônibus a pegar,
café da manhã para tomar, e a mulher para escutar

Escuta a sua mulher, Severo! Não saia de casa
justo agora, pega outro ônibus
em outra hora! pois que mal acabou o entrevero
e ainda há perigo lá fora

Lá fora já estava o Severino que não tinha
mulher para escutar, mas com sua vara de pescar,
saía todo o dia ao sereno, para pagar as suas contas
e sustentar o seu filhinho pequeno

Pequeno era o caminho de sua casa até as margens
do providencial rio em que pescava
como também pequeno seria para Severino
o dia que apenas começava:

um disparo leviano, num ato de covardia
(pois que todo disparo é covardia,
o aço feroz destruindo a pele macia)
fez Severino cair e de calor, sentir frio

Frio era o jeito diferente que Severo
começou aquela manhã tão fugidia:
preso aos muros de sua casa, perdia
os ônibus para o trabalho, enquanto Severino,
seu filho que trouxe consigo lá do nordeste,
inerte ali bem perto, Jazia

Jazia a bordo de uma carroça que ia,
puxada por mãos caridosas
e entre as vielas fugia
em busca de ajuda em hora tão dolorosa

Dolorosa foi a hora em que se via
o bravo Severo, de olhos marejados
debruçado inerme sobre o filho,
desesperança e desassossego,
em frente à delegacia

Em frente à delegacia uma
aglomeração de curiosos aparecia
para testemunhar a dor de um pai
inconformado, diante do seu filho
que aos poucos, morria

Morria aos poucos a curiosidade
e aos poucos, aquela gente se evadia,
pois era como se nada diferente,
naquela hora acontecia,
- Para que surpresa, minha gente
era apenas mais um que caía!

Caía sobre a mortalha negra do asfalto
e sobre o bueiro um filete grosso pendia,
tingindo de rubro a calçada,
era Severino que se esvaía!

- Esvaiu-se! morte involuntária, alguém dizia!
mas toda morte é involuntária
quem planeja morrer senão os suicidas?
os inocentes só planejam (sobre)viver
e pagar as contas do dia-a-dia

O dia já ia alto quando apontava
na esquina da rua e aparecia
depois da perícia, o rabecão
para levar aquela carcaça já tão fria!

Tão fria de vida involuntária
de quem viveu e não sabia
que viver e morrer involuntariamente
é o tributo que se paga, compulsório
a vida toda, todo dia!

8 comentários:

Anônimo disse...

Caro Adão,
Sua prosa é uma poesia e sua poesia é toda prosa!!! Mesmo em assuntos tão dramáticos, seu lirismo transcende o texto! Parabéns,

Forte abraço,

Anônimo disse...

É um história triste, porém verdadeira. Gostei da forma como vc a contou!

Bjs,
Cris

Anônimo disse...

Sua intimidade com as palavras é algo fantástico.
Sensacional meu amigo querido.
Beijos

Anônimo disse...

Sabe, lendo o que escreveste lembrei-me daquelas letras do Chico, que contam todo um enredo em poucas (e boas) palavras.!



Beijos,
Beatriz

Anônimo disse...

Adão,
Triste, mas cada vez mais verdadeiro quadro de nossa situação atual. Uma pena!!


Bjs,
Ana

Tamara Queiroz disse...

Nossa, Adão, que "brincadeira" mais gostosa essa de terminar a frase com uma palavra e começar a próxima com a mesma palavra. Lendo-te parece ser tão fácil fazer isso.

.............
Eu não quero uma morte tão severa assim. Bom, nem quero pensar nisso, vai.

.............
ADOREI, ADOREI, ADOREI, quero mais, quero mais. Parece aquelas historinhas, embora triste, que a gente gosta de ouvir...

B-jinhos.

Anônimo disse...

querido, adorei. Inspiradíssimo, como de hábito, não é mesmo?

sds / Léa

Anônimo disse...

O que eu vou comentar depois de ler isso?
Depois de ver que João Cabral se reproduz?
Só que estou feliz em ler você.
Um beijo grande!

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