
Na falta de uma alma caridosa que desse fim à insuportável campainha, fui, eu mesmo, atender. Era uma amiga que pelo tom de voz, estava naturalmente alheia a todos os meus pepinos daquela tarde, e queria conversar: - Oi, acabei de ler o seu texto sobre a Elis, está soberbo, meus parabéns!!!
- Aannhh, ... errr... ah, obrigado! Falei, meio sem jeito, como sempre fico diante de elogios inesperados em horas improváveis, somando-se minha irremediável timidez.
- Gostei de tudo do início ao fim, parece que vc estava ali, ao lado dela! Você tinha quantos anos mesmo na época do Festival? Perguntou ela, com naturalidade.
- Como assim, quantos anos??? Eu não havia nascido em 1965! Eu sou de meia-sete, você sabe!!! Vociferei meio sem paciência, enquanto chuviam e-mails e mensagens no "msn", e eu virava, de costas para o monitor.
- Desculpa, não quis te chamar de velho, não! É que o texto está tão real, que parece que foi relatado por alguém que estava realmente no local, como testemunha ocular. Falou a minha amiga, ressabiada.
Percebi então que ela apenas tentava me agradar, porém, sem sucesso algum e decidi contemporizar: - Tudo bem, eu agradeço suas palavras, mas entenda, se eu tivesse, por exemplo, dez anos na época, eu teria cinquenta e dois anos, atualmente! Eu pareço ter cinquenta e dois anos? Perguntei, tentando misturar lógica matemática com humor.
- Claro que não! Disse num sorriso amarelo que eu consegui captar do outro lado da linha. E tentou mudar de assunto: - Sabe, só uma coisa que eu não entendi bem. Estacou, esperando a resposta.
- Ah é, e qual seria? Perguntei, tentando mostrar interesse.
-Quando você disse que ela estaria perguntando se iria conseguir entrar no palco e cantar, como você pode saber que ela tinha este temor? Perguntou com um ar de sagacidade.
Eu fiquei pensando, não sei quanto tempo naquela pergunta, mas só consegui sair pela tangente: - Olha é só uma peça de ficção, eu realmente não sei se ela teve aquela reação, mas pelo histórico dela e sobretudo como recurso dramático para o meu texto, eu achei conveniente colocar... entendeu?
- Ah, sim... Tornou ela, sem muita convicção. E emendou: - É que eu viajei tanto no texto que tomei como realidade! Esqueci de que se trata de uma "peça de ficção"... e imitou a minha entonação de voz , tentando fazer graça. Se fosse qualquer outro momento eu adoraria a conversa e faria tudo para estendê-la, mas nas circunstâncias daquela hora, tudo o que eu queria era desligar o aparelho.
-Olha, eu tenho uma teoria, você sabe, uma das minhas milhares de teorias "infalíveis", de que certas pessoas são tão geniais quanto inseguras, e o medo de não conseguir repetir a última atuação, gravação ou espetáculo, ou mesmo o último poema ou conto, dá exatamente a força motriz , o "frio na barriga", a adrenalina necessária para tanto. É o combustível da pressão. E estes tipos de pessoas, geralmente conseguem fazer bem aquilo a que se propõem, apesar da prévia incerteza... Falei com o entusiasmo de quem defende uma tese, a esta altura da conversa, já havia esquecido o escritório, o calor e tudo o mais.
- Puxa, você está falando com conhecimento de causa, não é? Falou acentuando mais ainda o ar de sagacidade, tão próprio dela.
Eu corei e mal pude responder: - Nnnão, ... isto não! ...não sou tão pretensioso assim... Estou me referindo a pessoas geniais, como a Elis! Mas depois de todo o merecido sucesso alcançado, ela ganhou confiança e até registrou a voz como instrumento, na Ordem dos Músicos, o que prova que ganhou confiança em si mesma e no seu talento... Emendei tentando desconversar.
- Ah sim, eu sei! E também lançou compositores geniais, como Milton, Fernando Brandt, João Bosco, Aldir Blanc, Belchior.... prova de bom gosto, além de tudo! Acrescentou a amiga, num tom professoral. E emendou: -depois disto, todo "artista" quer "registrar" ou "colocar no seguro"seu instrumento de trabalho, os jogadores de futebol colocam as pernas, aquela ex-chacrete colocou a bunda... E após uma risadinha rápida, emendou: - Imagina o que um ator pornô colocaria no seguro???? E riu mais forte... - Você poderia colocar uma situação desta num de seus textos, não poderia?
-Poderia... respondi, e emendei imediatamente, como quem quer terminar a conversa com um mínimo de gentileza: - Que bom que você leu o texto e gostou, sabe, eu fiz de madrugada, como de costume, e às vezes o sono trai algumas das minhas melhores intenções... Mas apesar de não ter ficado exatamente como eu esperava, eu fiquei satisfeito com o resultado! ...A gente se fala então, tá? E joguei o gancho para fechar a conversa...
- Errr... tá bom, então... Ela assentiu. Mas perguntou, um pouco antes do "tchau" e de colocar o telefone no gancho: - Mas vem cá, que idade você tem mesmo? Não é por nada não, mas...
Não respondi. Inventei que tinha outra ligação e desliguei.
Antes de voltar ao monitor para ver o tamanho do estrago que a minha ausência temporária havia causado, corri ao espelho, lavei o rosto e disfarcei, procurei por algumas insuspeitas rugas no rosto molhado, me sequei e voltei para a o restante de minha sexta-feira abafada, pensando: - Nada como o carinho dos amigos!
p.s. A amiga em questão foi previamente consultada e adorou a idéia de transformar esta pequena desventura em texto.
21 comentários:
Arrá! Quantos anos você tem, hein?
;)
Você já está virando ninja, Adon.
Escrevendo textos e falando no msn, atendendo telefone e de olho nos emails...
Daqui a pouco está assoviando e chupando cana, enquanto discute quem é mais teimoso, o homem ou a mulher.
;P
Beijinho sem sotaque.
P.S. Primeirona.
De novo!
Nhé, nhé!
Adão,
Belo texto!
Só hoje, vasculhando por horas o teu delicioso blog, eu pude ler sobre o dia em "o poeta te visitou".
Adorei.
Deixo flores e estrelas recém-colhidas.
Adão,
Eu ri muito com este texto! Vou me lembrar de não te ligar no horário do trabalho, para não ser uma outra protagonista!
E vem cá, qual é a sua idade mesmo???? rsrsrrsrs
sds / Léa
Adão,
Você há de convir que é uma amiga dedicada... risos...
Uma boa semana, com um pouco menos de trabalho...
beijos
Cris
Adão, Você tem razão, nada como o carinho dos amigos! Mesmo em horas impróprias, o carinhO é muito bom!
Belo texto! Mais um, né?
beijinho
Ana
Adão:
A vida imita a arte. Ou será que é a arte que imita a vida? Não importa, às vezes, ficção vira realidade e esta se transforma em ficção.
Tudo, na verdade, depende do momento e de um ponto de vista.
Adão,
hehehe... aconteceu assim mesmo? fala sério, você está exagerando...
Nada como o carinho dos amigos!
Beijo
Caro Adão:
Como sou mais velho, não vou lhe perguntar a idade; pode ficar tranquilo.
A confusão criador/criatura é sempre um problema de velh....ops.. de experientes autores. Não se preocupe com isso.
Um abraço.
Adão, este foi mais um enunciado da lei de Murphy, com certeza.
Adorei o seu texto, como de hábito!
E vc tem certeza que não estava lá, no festival de 65????? rssssss
beijo
Bia
Adão,
Eu li um texto antigo seu sobre a importancia do afago dos leitores...
Então, não reclama!
beijo
Pois eu digo que você estava lá e pronto!
E não discuta!!!!
Adão, como eu não tenho problemas com a idade, faço 47 em agosto, achei que vc está preocupado demais com ela. A preocupação é que traz rugas, cuidado...rssss.
Como sempre mais um delicioso texto para os seus leitores. Adorei!
Bjos.
Caríssimo,
A realidade e ficção misturam-se de acordo com a qualidade de quem escreve. Desta forma, meus parabéns!!
Um forte abraço,
Adão,
O pior é quando ligam aquelas pessoas chatas, nas horas mais impróprias, querendo nos vender algo que realmente não precisamos!
abs
Quanta honra, hein?! Receber um telefonema em plena sexta-feira e ainda receber um feedback positivo sobre o texto da Elis.
Foi merecido!
.........
Foi devorado!
B-joletas {gostou, né?! Mais uma prá minha coleção}
Adão,
Mais um belo conto. Quando lançar um livro, tenha certeza que eu vou comprar!
bjs
Aline
Adão, O carinho dos amigos é fundamental. No seu lugar, eu ficaria embaraçada também, mas ficaria embevecida com a ligação.
beijos
KKKKK !!! Esse é o ônus que paga quem escreve com tanta maestria, meu caro!
Excelente texto. Uma bem-humorada forma de dar continuidade à justa homenagem a Elis e de contar um episódio do cotidiano.
Um abraço!
Essa é amiga mesmo, viu?
Bjs
Risos.
Não vou perguntar quantos anos o amigo tem, mas vou dizer que seus textos estão se superando.
E nada como uma uma sexta-feira sem
Lei de Murphy, não é mesmo?
Abs
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