terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A peculiar fantasia de Pierrot e Colombina


O carnaval do Arlequim, Joan Miró


O homem se arrumava com bastante desvelo. Os cabelos untados em gel, o rosto imberbe amaciado pela sua melhor loção, o corpo borrifado de desodorante. O silêncio incomum no ambiente não refletia o reboar ensurdecedor no peito de Pierre.  A sua esposa, Pombinha, como ele e a família a chamavam, estava distante. Haviam combinado que ele seguiria para um retiro particular, para aliviar o estresse, como sempre fazia nesta época do ano. Despachara a mulher para a casa da sogra, hospedara o cachorro no melhor hotel especializado, desligara os telefones.  Era carnaval, enfim.

Mas a verdade é que ele não conseguia conter a sua ansiedade de folião.  E também não conseguia tirar aquela mulher misteriosa de sua cabeça.  Uma beldade que ele encontrara no primeiro dia de carnaval.  Ela exerceu tamanha atração sobre Pierre que o pobre dedicara cada um dos dias de folia a procurá-la. Esquecera da casa, da esposa, de si mesmo. Mal dormia e se alimentava. Não importava nem que a sua musa estivesse acompanhada de um impertinente arlequim. Queria aquela Colombina com todas as suas forças.

Lembrava exatamente de suas primeiras impressões: mistura de ninfa grega e estrela nórdica, desfilando a sua longa cabeleira loura (e que cabelos!) que emoldurava um rosto tão belo, coberto por discreta máscara negra, cravejada de paetês dourados.

O primeiro encontro acontecera em plena Lapa. Entre cordões de transeuntes coalhados de confete, serpentina e muita animação, ele a encontrara e a perdera da mesma forma: inesperadamente. Chegou em casa desolado, decidido a reencontrá-la no dia seguinte. Não sabia como, mas a única certeza que tinha naquele momento era de que a reencontraria.

No dia seguinte, em pleno sambódromo, lá estava ela, no camarote em frente ao seu! Ela era só alegria, sambando e pulando como se estivesse se exibindo para ele, apesar da companhia do mesmo arlequim do dia passado!  Seria necessário contornar quase toda a avenida para chegar ao ponto onde ela estava. Após vencer todas as barreiras, descobriu desanimado que o grupinho já havia ido embora.

No terceiro dia, ele a encontrou, novamente, num desfile de bandas da zona sul. Ela estava deslumbrante, sua vasta cabeleira loura (como adorava aqueles cabelos!) destacava-se sob a luz do sol. Aproximando-se, trocaram sorrisos, ele se apresentou, apesar dela, propositalmente,  manter-se no anonimato, o que fazia aumentar o clima de mistério, como também, o tesão que o coitado do Pierre sentia!

Enquanto falava com ela, descobria-se perdidamente apaixonado, perguntava-se como nunca a havia encontrado antes e o porquê de nunca haver sentido nada parecido por sua esposa. Ela o escutava, enigmática. Nada revelava e sustentava um leve sorriso de deboche. Ele confessou a atração que sentia e pediu para que ela passasse o resto do carnaval com ele.  Ela declinou, tinha compromissos para a noite (Ah, o arlequim!), mas combinou de encontrá-lo no dia seguinte, no baile da cidade.

Finalmente, era chegada a última noite. E desta vez, ela não escaparia, não como nos últimos três dias. No baile, ansioso pelo encontro, circulou por todo o salão, olhando para todas as direções, em cada parada bebia algo diferente: cerveja, uísque, vodka, espumante e energético passaram pela sua goela.

Lá pelas tantas, ele a avistou: seus cabelos louros presos num coque elegante, trajando uma fantasia de gala. Aproximou-se, tentou falar alguma coisa, mas o barulho era intenso e ela não parecia muito interessada. Na verdade, a atitude dela era mais de desdém e ironia do que de interesse, o que não diminuía em nada o ímpeto do bravo Pierre. Pediu um instante para ir ao banheiro e a perdeu de vista novamente. Esquadrinhou todo o salão, sem êxito. Teria ela ido embora com aquele maldito arlequim?

Num rompante, pagou sua conta, se dirigiu para a saída e finalmente a encontrou. Ela estava sozinha, preparando-se para pegar um táxi. Num misto de desespero e coragem, Pierre partiu para a loura, segurou firmemente seu braço e clamou: - Nem que seja a última coisa que eu faça, vem comigo!

Ela esboçou uma reação, repelida com firmeza por Pierre. Pegaram o táxi. Rumaram para o apartamento dele.

No instante seguinte lá estava ela, entrelaçada em seus braços, os seus lábios macios colados nos dele, os corpos nus num movimento frenético, o ressonante reboar de seus corações parecendo um duelo de duas escolas de samba numa única avenida. Ele a fixava de cima a baixo,  nunca uma estranha lhe pareceu tão familiar... Numa mistura de perplexidade e satisfação, de cansaço e gozo, os movimentos desfaleceram. As fantasias repousaram inertes, saciadas, no chão.

Na quarta-feira de cinzas, ele acordou com a sensação de quem ainda vivia o sonho da noite anterior. Vislumbrou suas roupas e as dela, arrumadas no closet do quarto, numa mesinha de cabeceira uma farta peruca loura (céus, aqueles cabelos!) repousava desalinhada, já sem a graça de antes. Ao lado da peruca, a máscara negra, cravejada de paetês dourados.

Tateou seus óculos, colocou-os no rosto e apertando a visão, viu diante de si, aquela mulher, agora ruiva, vestida num roupão doméstico, olhando-o entre a franca comiseração e a leve desfaçatez . Pierre soltou um grito:

-Pombinha!

-Deixa de preguiça e vai tomar uma ducha, querido... Lembre-se que hoje é dia de trabalho e... pelo amor de deus!... a casa está uma bagunça! O que você fez estes dias todos?

Respondeu a mulher, com um sorriso no canto do rosto. E inclinando-se suavemente para dar-lhe um beijinho, deixou grudado um pedacinho de paetê dourado, descolado de uma de suas mais íntimas fantasias.

 

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Um comentário:

Tamara Queiroz disse...

Prendi a respiração quando li "... numa mesinha de cabeceira uma farta peruca loura (céus, aqueles cabelos!) repousava desalinhada..." e pensei:

— Ó céus, mais um caso Ronaldinho.

Muito bom, querido. Muito bom!

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