domingo, 21 de janeiro de 2007

Mais Elis, num telefonema...

No meio daquela tarde abafada, o telefone tocou, mais uma vez. Era uma sexta-feira, o dia internacional da lei de Murphy. Acontece de tudo numa sexta-feira! Quem trabalha em escritório sabe o que digo.

Na falta de uma alma caridosa que desse fim à insuportável campainha, fui, eu mesmo, atender. Era uma amiga que pelo tom de voz, estava naturalmente alheia a todos os meus pepinos daquela tarde, e queria conversar: - Oi, acabei de ler o seu texto sobre a Elis, está soberbo, meus parabéns!!!

- Aannhh, ... errr... ah, obrigado! Falei, meio sem jeito, como sempre fico diante de elogios inesperados em horas improváveis, somando-se minha irremediável timidez.

- Gostei de tudo do início ao fim, parece que vc estava ali, ao lado dela! Você tinha quantos anos mesmo na época do Festival? Perguntou ela, com naturalidade.

- Como assim, quantos anos??? Eu não havia nascido em 1965! Eu sou de meia-sete, você sabe!!! Vociferei meio sem paciência, enquanto chuviam e-mails e mensagens no "msn", e eu virava, de costas para o monitor.

- Desculpa, não quis te chamar de velho, não! É que o texto está tão real, que parece que foi relatado por alguém que estava realmente no local, como testemunha ocular. Falou a minha amiga, ressabiada.

Percebi então que ela apenas tentava me agradar, porém, sem sucesso algum e decidi contemporizar: - Tudo bem, eu agradeço suas palavras, mas entenda, se eu tivesse, por exemplo, dez anos na época, eu teria cinquenta e dois anos, atualmente! Eu pareço ter cinquenta e dois anos? Perguntei, tentando misturar lógica matemática com humor.

- Claro que não! Disse num sorriso amarelo que eu consegui captar do outro lado da linha. E tentou mudar de assunto: - Sabe, só uma coisa que eu não entendi bem. Estacou, esperando a resposta.

- Ah é, e qual seria? Perguntei, tentando mostrar interesse.

-Quando você disse que ela estaria perguntando se iria conseguir entrar no palco e cantar, como você pode saber que ela tinha este temor? Perguntou com um ar de sagacidade.

Eu fiquei pensando, não sei quanto tempo naquela pergunta, mas só consegui sair pela tangente: - Olha é só uma peça de ficção, eu realmente não sei se ela teve aquela reação, mas pelo histórico dela e sobretudo como recurso dramático para o meu texto, eu achei conveniente colocar... entendeu?

- Ah, sim... Tornou ela, sem muita convicção. E emendou: - É que eu viajei tanto no texto que tomei como realidade! Esqueci de que se trata de uma "peça de ficção"... e imitou a minha entonação de voz , tentando fazer graça. Se fosse qualquer outro momento eu adoraria a conversa e faria tudo para estendê-la, mas nas circunstâncias daquela hora, tudo o que eu queria era desligar o aparelho.

-Olha, eu tenho uma teoria, você sabe, uma das minhas milhares de teorias "infalíveis", de que certas pessoas são tão geniais quanto inseguras, e o medo de não conseguir repetir a última atuação, gravação ou espetáculo, ou mesmo o último poema ou conto, dá exatamente a força motriz , o "frio na barriga", a adrenalina necessária para tanto. É o combustível da pressão. E estes tipos de pessoas, geralmente conseguem fazer bem aquilo a que se propõem, apesar da prévia incerteza... Falei com o entusiasmo de quem defende uma tese, a esta altura da conversa, já havia esquecido o escritório, o calor e tudo o mais.

- Puxa, você está falando com conhecimento de causa, não é? Falou acentuando mais ainda o ar de sagacidade, tão próprio dela.

Eu corei e mal pude responder: - Nnnão, ... isto não! ...não sou tão pretensioso assim... Estou me referindo a pessoas geniais, como a Elis! Mas depois de todo o merecido sucesso alcançado, ela ganhou confiança e até registrou a voz como instrumento, na Ordem dos Músicos, o que prova que ganhou confiança em si mesma e no seu talento... Emendei tentando desconversar.

- Ah sim, eu sei! E também lançou compositores geniais, como Milton, Fernando Brandt, João Bosco, Aldir Blanc, Belchior.... prova de bom gosto, além de tudo! Acrescentou a amiga, num tom professoral. E emendou: -depois disto, todo "artista" quer "registrar" ou "colocar no seguro"seu instrumento de trabalho, os jogadores de futebol colocam as pernas, aquela ex-chacrete colocou a bunda... E após uma risadinha rápida, emendou: - Imagina o que um ator pornô colocaria no seguro???? E riu mais forte... - Você poderia colocar uma situação desta num de seus textos, não poderia?

-Poderia... respondi, e emendei imediatamente, como quem quer terminar a conversa com um mínimo de gentileza: - Que bom que você leu o texto e gostou, sabe, eu fiz de madrugada, como de costume, e às vezes o sono trai algumas das minhas melhores intenções... Mas apesar de não ter ficado exatamente como eu esperava, eu fiquei satisfeito com o resultado! ...A gente se fala então, tá? E joguei o gancho para fechar a conversa...

- Errr... tá bom, então... Ela assentiu. Mas perguntou, um pouco antes do "tchau" e de colocar o telefone no gancho: - Mas vem cá, que idade você tem mesmo? Não é por nada não, mas...

Não respondi. Inventei que tinha outra ligação e desliguei.

Antes de voltar ao monitor para ver o tamanho do estrago que a minha ausência temporária havia causado, corri ao espelho, lavei o rosto e disfarcei, procurei por algumas insuspeitas rugas no rosto molhado, me sequei e voltei para a o restante de minha sexta-feira abafada, pensando: - Nada como o carinho dos amigos!


p.s. A amiga em questão foi previamente consultada e adorou a idéia de transformar esta pequena desventura em texto.

21 comentários:

Anônimo disse...

Arrá! Quantos anos você tem, hein?
;)

Você já está virando ninja, Adon.
Escrevendo textos e falando no msn, atendendo telefone e de olho nos emails...

Daqui a pouco está assoviando e chupando cana, enquanto discute quem é mais teimoso, o homem ou a mulher.
;P

Beijinho sem sotaque.

Anônimo disse...

P.S. Primeirona.
De novo!
Nhé, nhé!

Anônimo disse...

Adão,



Belo texto!

Só hoje, vasculhando por horas o teu delicioso blog, eu pude ler sobre o dia em "o poeta te visitou".


Adorei.


Deixo flores e estrelas recém-colhidas.

Anônimo disse...

Adão,
Eu ri muito com este texto! Vou me lembrar de não te ligar no horário do trabalho, para não ser uma outra protagonista!

E vem cá, qual é a sua idade mesmo???? rsrsrrsrs

sds / Léa

Anônimo disse...

Adão,
Você há de convir que é uma amiga dedicada... risos...

Uma boa semana, com um pouco menos de trabalho...

beijos
Cris

Anônimo disse...

Adão, Você tem razão, nada como o carinho dos amigos! Mesmo em horas impróprias, o carinhO é muito bom!
Belo texto! Mais um, né?

beijinho
Ana

Anônimo disse...

Adão:
A vida imita a arte. Ou será que é a arte que imita a vida? Não importa, às vezes, ficção vira realidade e esta se transforma em ficção.
Tudo, na verdade, depende do momento e de um ponto de vista.

Anônimo disse...

Adão,

hehehe... aconteceu assim mesmo? fala sério, você está exagerando...

Nada como o carinho dos amigos!


Beijo

@David_Nobrega disse...

Caro Adão:

Como sou mais velho, não vou lhe perguntar a idade; pode ficar tranquilo.
A confusão criador/criatura é sempre um problema de velh....ops.. de experientes autores. Não se preocupe com isso.
Um abraço.

Anônimo disse...

Adão, este foi mais um enunciado da lei de Murphy, com certeza.
Adorei o seu texto, como de hábito!
E vc tem certeza que não estava lá, no festival de 65????? rssssss


beijo
Bia

Anônimo disse...

Adão,

Eu li um texto antigo seu sobre a importancia do afago dos leitores...

Então, não reclama!

beijo

Eliana Tavares disse...

Pois eu digo que você estava lá e pronto!
E não discuta!!!!

Vera F. disse...

Adão, como eu não tenho problemas com a idade, faço 47 em agosto, achei que vc está preocupado demais com ela. A preocupação é que traz rugas, cuidado...rssss.
Como sempre mais um delicioso texto para os seus leitores. Adorei!

Bjos.

Anônimo disse...

Caríssimo,

A realidade e ficção misturam-se de acordo com a qualidade de quem escreve. Desta forma, meus parabéns!!

Um forte abraço,

Anônimo disse...

Adão,
O pior é quando ligam aquelas pessoas chatas, nas horas mais impróprias, querendo nos vender algo que realmente não precisamos!

abs

Tamara Queiroz disse...

Quanta honra, hein?! Receber um telefonema em plena sexta-feira e ainda receber um feedback positivo sobre o texto da Elis.

Foi merecido!

.........
Foi devorado!

B-joletas {gostou, né?! Mais uma prá minha coleção}

Anônimo disse...

Adão,

Mais um belo conto. Quando lançar um livro, tenha certeza que eu vou comprar!

bjs
Aline

Anônimo disse...

Adão, O carinho dos amigos é fundamental. No seu lugar, eu ficaria embaraçada também, mas ficaria embevecida com a ligação.

beijos

Sheherazade disse...

KKKKK !!! Esse é o ônus que paga quem escreve com tanta maestria, meu caro!
Excelente texto. Uma bem-humorada forma de dar continuidade à justa homenagem a Elis e de contar um episódio do cotidiano.

Um abraço!

Anônimo disse...

Essa é amiga mesmo, viu?
Bjs

Anônimo disse...

Risos.
Não vou perguntar quantos anos o amigo tem, mas vou dizer que seus textos estão se superando.

E nada como uma uma sexta-feira sem
Lei de Murphy, não é mesmo?

Abs

Postar um comentário

As opiniões aqui postadas são de responsabilidade de seus autores. O Autor do blog somente se responsabiliza pelo conteúdo publicado e assinado pelo próprio.